O retrato do yoga nos dias de hoje – Nuno, Ashtanga Yoga Carcavelos
“Frequentemente vemos fotografias (minhas incluídas) de posturas avançadas com o intuito de inspirar ou impressionar os outros acerca dos benefícios do yoga. Mas onde é que este fenómeno cultural deixa de ser inspiração e passa a ser vangloriação?”
A Epistemologia é o processo filosófico que trata a forma de como uma pessoa sabe o que sabe. Quando a Vânia me convidou para escrever sobre a imagem e retrato do yoga nos dias de hoje – e especialmente nas redes sociais – preocupou-me mais falar sobre o porquê de sabermos as coisas que sabemos, ao invés do como. As primeiras coisas primeiro: a prática de Yoga é um processo interminável e sem conclusão. Para a vida, e além.
Contemporaneamente, talvez pensemos que um estado de Yoga é algo que se “atinge”, depois de sermos metafisicamente abalroados em posturas circenses na expectativa de não nos sentirmos alienados pelos nossos pares “dotados e talentosos” que nos afogam a retina, um post de instagram à vez. Escrevo isto por experiência. De tempo a tempo dou por mim não como uma espécie de observador transcendente, sabiamente a olhar por mim com compaixão, mas sim dissociado, um fantasma esfomeado a repetir imagens numa tentativa fútil de satisfazer o meu desejo por validação.
Com o aumento da popularidade do Yoga, as redes sociais revelam uma clara confusão sobre a natureza do Yoga, e essa confusão é endémica ao yoga popularizado por posturas acrobáticas e corpos tonificados. E nós perguntamos, “Isto é parte do Yoga?”. A nossa confusão é sintomática: não só nos tornamos vulneráveis perante alguém cujos atributos físicos passam uma ideia de que entendem mais de Yoga do que nós, alguém que nos promete guiar a uma qualquer forma extraordinária de nos relacionarmos com o nosso corpo e mente, como consideramos esses atributos como essenciais para a nossa paz interior e felicidade.
As redes sociais podem de algum modo passar a impressão de que o yoga é uma arte de performance física.
Não existem dúvidas que o que vemos nas redes sociais é precisamente isso. Quando pessoas atléticas tiram fotografias de si mesmos em posições acrobáticas em lugares idílicos, estão decididamente envolvidas numa forma de performance estética moderna. As imagens resultantes, inspiram fascínio pelo corpo e deslumbre ao quanto ele se pode contorcer, desafiando os standards normais de beleza física, mas ao mesmo tempo distorcem o nosso senso natural do que é equilíbrio, simetria e forma. Mais do que isso, as imagens em questão contribuem para uma conversa muito maior sobre o significado de corporização ou materialização, uma conversa na qual todos estamos envolvidos, quer tenhamos essa compreensão ou não.
As imagens das redes sociais – tal como as posturas de Yoga – são símbolos de algo que todos ansiamos tocar, algo do qual estamos profundamente alienados e que sonhamos redescobrir. Lembram-nos que todos materializamos este alguém enigmático que habita dentro de nós, mesmo que isso signifique que o persigamos indeterminadamente. Esta é uma das estranhas realidades da condição humana: temos dificuldade em tocar as coisas que nos são mais próximas, mesmo que elas tenham um pulso e ritmo logo ali na superfície da nossa pele.
O “lado negro” da exposição do yoga – ou de qualquer outra forma de expressão – é a distorção da realidade.
E com a omnipresença das redes sociais, essa distorção é hoje mais pervasiva que sempre. As redes sociais colocam nas nossas mãos o poder de esculpirmos a nossa imagem pública, através de palavras e imagens cuidadosamente orquestradas. E com a disseminação desse poder, existe uma mudança curiosa na forma como localizamos a nossa identidade, o nosso sentido do “eu”. Como sempre, nós vemo-nos como os outros nos veem. Mas agora temos o poder de manipular como os outros nos veem, com as fotografias minuciosamente trabalhadas que lhes mostramos da nossa vida.
Esta mudança afeta-nos a todos, independentemente do quanto somos ativos nas redes sociais ou não,
Pois cria um padrão no qual as utilizamos para formarmos as nossas opiniões uns dos outros – e mesmo que resistamos, a não participação tem também o seu significado, sugerindo uma aliança com a opacidade da mente humana, onde a pressão para “existir” online – e existir dentro dos padrões exigidos – faz com que os mais resistentes sejam considerados como não talentosos o suficiente ou não dignos do hashtag que está em voga no momento.
As redes sociais adotaram também um carácter confessional bastante forte, o que pode fazer com que os mais introvertidos e inseguros de nós corem de desconforto perante as imagens que nos são vendidas. Este caracter confessional cria uma ilusão de transparência que aparenta colapsar os alicerces sob os quais a personalidade e a mente assentam, trazendo ao de cima coisas que muitos de nós preferiríamos manter escondidas – seja porque são demasiado humilhantes, demasiado frívolas, ou demasiado sagradas para serem expostas no olho público. Neste sentido, elas podem distorcer seriamente as nossas percepções do outro, ao criarem um falso sentido de transparência. Contudo, ao mesmo tempo, é inegável que são uma janela aberta para a nossa consciência coletiva. O que flui de forma ensurdecedora através dos seus canais é um reflexo extremamente lúcido e revelador das forças escondidas que trabalham em silêncio a esculpir a mente coletiva.
O narcisismo que encontramos nas redes sociais é o nosso narcisismo. A vaidade que vemos, é a nossa vaidade. Tudo o que aparece na janela de 4’7 expõe-nos, mostrando-nos o que reside no fundo do poço psíquico.
E tudo depende de como reagimos ao que surge. Se reagirmos com desprezo e ressentimento à vaidade dos outros, então desprezo e ressentimento é o que nos tornamos. Se reagirmos com desdém e desvalorização, é esse o sentimento que nutrimos por nós mesmos. No momento em que materializamos e tomamos forma dessas emoções afiadas, permitimos que nos definam. Se por outro lado observarmos as imagens das redes sociais com suavidade e atenção, então conseguimos libertar alguma da energia por detrás das nossas tendências reativas e distorcidas. Isto é, libertamos alguma da pressão do nosso ego, que nos inclina a reagir com ressentimento a coisas que ameacem a santidade e solidez das nossas próprias identificações. Porque elas não passam de isso mesmo, identificações. Quando vemos supostas imagens de yoga nas redes sociais, essas ameaças podem ser bastante fortes – especialmente para quem não se enquadra no estereótipo perpetuado da obsessão física.
Mas o verdadeiro yoga está sempre no momento presente.
Quando nos aborrecemos ou desiludimos com o que vemos como sendo uma adulteração ou perversão daquilo que consideramos querido ao nosso coração, é da nossa natureza respondermos de forma emocional – nem sempre positiva – e quando assim é, perdemos o caminho. Não que o Yoga exija que vivamos sem discernimento – muito pelo contrário, o discernimento é um dos veículos pelo qual evoluímos. Mas enquanto estivermos presos a emoções negativas, não conseguimos ter a claridade necessária da qual o discernimento depende. Estas emoções distorcem as nossas noções de realidade, e como tal não conseguimos apreciar a real inteligência e maravilha do que seja que está perante nós.
Na sombra dessas emoções, é fácil que nos passem despercebidos os aspetos mais sublimes do yoga. E esses aspetos podem estar em qualquer lado, mesmo nas redes sociais.
Na filosofia do Yoga, o nosso ego é maya , o véu da ilusão que cobre o nosso mundo dos sentidos.
O mundo que cria a ideia de que todos somos separados e isolados. Ele é o responsável por nos dotar do nosso senso de presunção e altivismo. Contudo, maya é também o espelho no qual nos vemos refletidos, e onde tomamos consciência do que realmente somos, se nos permitirmos a isso.
A verdadeira essência da prática de Yoga começa quando apreciamos a dualidade na natureza de maya, e a forma como maya tem a capacidade de ocultar e revelar ao mesmo tempo. Começa quando nos libertamos das emoções negativas que projetamos nas outras pessoas, e suspendemos as nossas ideias pré-concebidas acerca de quem elas são, e lhes permitimos que nos afoguem com os seus excessos e absurdidades, especialmente quando isso ameaça de alguma forma a nossa ideia de identidade e provavelmente a nossa própria vaidade e autoconfiança.
A prática de yoga revela-se quando criamos espaço para que as redes sociais existam, mesmo quando elas ofendem as nossas sensibilidades estéticas e filosóficas, até que comecem a transbordar além das fronteiras da nossa compreensão, até que comecem a quebrar os espaços confinados dos nossos julgamentos acerca da sua superficialidade, revelando-se na sua absoluta essência.
É do nosso dever e dignidade que a nossa consciência seja refrativa de uma forma única e que contribua com a nossa singularidade para o desenrolar da nossa evolução como mente coletiva.
Por mais imperfeitas que as nossas expressões possam ser, cada um de nós é movido pelo mesmo desejo de superar os nossos padrões e condicionamentos e pelo desejo de superar este nosso sentimento de isolamento.
A fogueira das vaidades continuará a correr através das redes sociais, simplesmente porque faz parte da função mental que existe na nossa humanidade. Mas se olharmos com olhos atentos, poderemos ver além da vaidade, além do corpo bonito e flexível e das frases “espirituais”. Se olharmos com olhos compassivos, poderemos reconhecer e honrar a expressão do corpo como uma tela, um trabalho inacabado e em constante mudança.
A real ilusão das redes sociais, é de que por culpa do nosso indomável desejo de reconhecimento e apreciação, e da nossa constante obsessão com o invólucro físico da nossa imagem, o nosso ego ofusca a nossa verdadeira essência na sua fonte.
Qualquer pessoa, sejam quais forem as suas limitações, físicas, psíquicas e emocionais, está pronta para praticar e estudar yoga. Qualquer pessoa.
É importante que o façam através de um professor, não através de concursos no instagram ou livros de pseudo ajuda e lifestyle “yogico”, e compreender que colocar fotos nas redes sociais de supostas posturas de yoga, não as torna necessariamente praticantes de yoga, na mesma que proporção que estarmos dentro de uma garagem não nos torna um carro.
Isto significa que, para um aspirante à prática de yoga, não existe necessidade de se auto mutilar visualmente e emocionalmente com a oferta ocular das redes sociais, pois as posturas são uma parte ínfima e bastante irrelevante quando colocadas em perspetiva com significado do que significa praticar yoga. Para alguém que desenvolva uma paixão por esta prática, basta que permita que as posturas ocorram de forma natural e altamente permissiva, de acordo com a nossa mente, corpo e espírito. É importante que uma aluna ou aluno saiba que não existe resposta final, e que uma parte do processo de aprendizagem é o de falhar repetidamente no caminho do crescimento e conhecimento.
Por experiência própria e como (ex) aluno de professores extremamente dogmáticos e obtusos, sei da importância de lembrar e relembrar todos os meus alunos de que as fronteiras da prática de yoga não são estáticas, mas que se expandem e contraem organicamente, de acordo com as capacidades físicas de cada indivíduo, da sua abertura a aprender e da sua disciplina e dedicação.
Ao contrário do que nos é transmitido pelas imagens online,
Uma prática de yoga deve ser um espaço onde as mais pequenas vitórias são celebradas, onde quem pratica pode construir O SEU modelo de prática baseado em feedback positivo, onde entendem que podem ser fracos, pouco flexíveis, desalinhados, ter condições físicas debilitantes e outros problemas de saúde, onde podem não se sentir atraentes de acordo com os padrões que as redes sociais – e não só – nos colocam, onde podem ser gay, bi, tri, classe baixa, no fundo de desemprego, e ao mesmo tempo conseguirem rumar na direção de uma prática forte, de aprendizagem, flexível, com compaixão e autoconhecimento.
O excesso de desejo pode conduzir-nos à ruína.
Os verdadeiros mestres ensinam-nos porque sabem servir, porque reconhecem os absurdos de uma sociedade doente, que glorifica o poder e exalta a imagem.
Uma sociedade racista, machista, preconceituosa, superficial e incoerente. Vemos faces cansadas e necessidades inventadas numa tela plana da mentira. Cabe-nos a cada um de nós – eu e tu – que participamos de forma mais ou menos ativa recusar este progresso estéril da consciência humana. Cabe-me a mim e cabe-te a ti não patrocinar a morfina audiovisual, e empenharmo-nos na edificação inteligente do coletivo.
Por isso gritem, chorem, cantem e usem as redes sociais com isso em mente!
Por nós, pelos nossos amigos, irmãos, pelos amores da nossa vida e por todos os que sofrem e precisam de sentir que, já são perfeitos da forma que são, e que a única validação que alguma vez irão necessitar, já lhes foi dada pela vida, no dia em que nasceram.
Para conheceres mais sobre o trabalho do Nuno visita o:
sofia
Vânia e Nuno muito obrigada por este post, está absolutamente espectacular, está tudo dito de forma tão certeira que sinceramente isto devia ser partilhado massivamente para que mais pessoas entendam que o yoga é uma prática para a vida.
Carolina Simão
obrigada por trazerem um pouco de sanidade a este mundo. como praticante de yoga há mais de 10 anos faço uma vénia a este texto